quinta-feira, maio 18, 2006

Entrevista para a jornalista Fátima Caçador


Ao longo dos últimos anos foram já apresentados pelo menos meia dúzia de planos para a modernização da AP através do uso das tecnologias, mais ou menos estruturados. Acha que o Simplex tem mais hipóteses de ser bem sucedido? Porquê? Quais as diferenças que vê neste programa?

No essencial o Simplex vem na sequência dos valores estratégicos e de muitas das iniciativas de modernização administrativa iniciadas há mais de 20 anos em Portugal e na linha das recomendações e das práticas prosseguidas na maioria dos países da OCDE desde essa altura.
Portugal tem tido nos últimos anos ciclos de euforia e desencanto nas várias iniciativas de modernização do aparelho do Estado, que se traduzem numa montra internacional de boas e más práticas administrativas.
O Simplex para já é uma recolha bem sistematizada e particularmente bem comunicada de intenções de mudança administrativa.
Num contexto em que a popularidade social e política parece que cresce com a maledicência em relação ao peso e à incompetência dos recursos humanos do sector público, o Simplex constitui uma nesga de esperança e um pedaço de céu azul no meio da trovoada em que a Administração Pública mergulhou nos últimos anos.

Liderou o Secretariado para a Modernização Administrativa que desenvolveu uma série de projectos. Na sua opinião foi cedo demais? O que falhou e o que foi bem feito?

Tratou-se de uma pequena equipa politicamente bem liderada que nunca abandonou o espírito de missão e que nunca se pretendeu institucionalizar com carácter permanente. Esse foi sem dúvida um dos seus valores mais preciosos a par de uma preocupação constante em envolver todos os intervenientes na mudança, incluindo as associações empresariais e outras organizações da sociedade civil. Eu próprio sempre me vi como um “casamenteiro” e um integrador de processos interdepartamentais, que no passado constituíam perfeitas heresias.
Algumas das iniciativas que foram revolucionárias na altura e que eu ajudei a criar e a propagar nos cinco continentes, hoje parecem-nos óbvias e irreversíveis, mas poderíamos ter ido muito mais além se tivéssemos respeito um pelos outros e soubéssemos valorizar e capitalizar todos os nossos activos de conhecimento e experiência. Tenho 34 anos de trabalho directamente relacionado com actividades de modernização administrativa e habituei-me a assistir a processos arbitrariamente descontinuados por sucessivas alterações políticas, os quais são mais tarde retomados ou reinventados a partir da estaca zero.
Parece um paradoxo, mas em Portugal por ser sempre demasiadamente cedo, tudo depois nos parece demasiadamente tarde.

Na sua análise, a AP está mal informatizada, mal interligada e estruturada em termos tecnológicos ou é sobretudo uma questão de processos e formação é por ai que tem de se começar? Qual é o seu diagnóstico?

A administração Pública está mais informatizada do que a generalidade do país, o problema não está na quantidade de tecnologia, mas no seu mau aproveitamento. A Administração Pública está dividida e fechada em múltiplos casulos tecnológicos, autoprotegidos e virados de costas uns para os outros.
Existe uma carência estrutural de competências de gestão, planeamento e concepção de arquitecturas de sistemas e tecnologias da informação. O Estado tem muito pouca consciência do que é e do que precisa e ainda não é capaz de alargar o espaço e o tempo da sua transformação através do uso intensivo e partilhado das tecnologias.
A estratégia ainda está centrada no aprovisionamento tecnológico e menos na concepção de um espaço arquitectónico ordenado e regulado para todo o sector público.
Mesmo no programa de reforma anunciado, ainda não ficaram claras a missões e as competências no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação, que deveremos proteger de forma soberana e aquelas que se devem externalizar de forma mais eficiente e económica.

Comparativamente com o que se faz noutros países, em que ponto pensa que está Portugal na modernização de processos e na resposta ao cidadão?

Portugal tem perdido dinâmica desde o início do século. A passagem do ano 2000 constituiu uma alavanca de renovação para muitos países, mas a generalidade da administração pública portuguesa não aproveitou esta oportunidade de transformação. Não se pense que existem muitos paraísos na terra, pois o ser humano tem em todo o lado os mesmos defeitos e virtudes. Sem dúvida que os países que estão no topo da modernização dos processos administrativos, iniciaram há mais de dez anos um conjunto de iniciativas estruturantes, autosustentadas, capazes de resistir à tentação da reinvenção política e confiando e prestigiando os verdadeiros agentes da mudança que são os funcionários públicos.
Começámos como eles na mesma linha de partida, mas não soubemos passar o testemunho nas alturas decisivas.

Parece-lhe lógica uma abordagem de serviço ao cidadão muito virada para a Internet num país onde existe ainda uma tão grande divisão digital e uma penetração baixa do uso da Internet?

A universalidade do acesso aos serviços públicos electrónicos tem sido uma das minhas lutas há quase vinte anos. A inclusão social parece agora começar a ter lugar na agenda política, mas ao longo dos anos foram sendo destruídos alguns dos canais mais democráticos de acesso e até aqui pouco se aproveitaram as oportunidades que a Internet oferece como plataforma base para os serviços de carácter universal. É de louvar que se comece finalmente a reconhecer a importância das lojas virtuais do cidadão, chamadas de “Balcão Único” no Programa do actual Governo, podendo transformar cada um dos 18 mil pontos de contacto com o cidadão em todo o território português em centros únicos de formalidades (one-stop-shopping) ou lojas do cidadão de baixo custo. Se é aquilo que eu sempre defendi, trata-se de uma iniciativa que pretende transformar todos os actuais serviços de atendimento em centros de intermediação com funcionários preparados para o fornecimento universal e gratuito dos serviços electrónicos já hoje disponíveis para 35% da população privilegiada, tornando-os acessíveis a todos os restantes cidadãos info-excluídos do nosso país.

Quais os riscos que se correm com a abertura da informação pública ? Já o ouvi falar na caixa de Pandora....

Desde o Artº 268º da Constituição, passado pela Lei de Acesso aos Documentos da Administração, até chegarmos à transposição da Directiva 2003/98/CE, Portugal tem um enquadramento jurídico dos mais avançados no que se refere aos direitos de acesso à informação pública, no entanto, para além de se tratar de um direito quase ignorado pela generalidade dos cidadãos e agentes económicos, a administração pública ainda não passa de uma caixa de Pandora, pois desde 1997 que estamos à espera que se concretizem as medidas de classificação da informação do sector público, propostas no Livro Verde para a Sociedade de Informação e que aumente o grau de digitalização dos activos informacionais do Estado que se encontram por enquanto à espera de arquitecturas e repositórios partilhados e acessíveis de forma segura e transparente. Como na caixa de Pandora criaram-se muitas expectativas legislativas para uma informação de má qualidade guardada a sete chaves em muitos organismos públicos e incapaz de resistir ao efectivo exercício dos direitos de cidadania.

Defende o uso de software livre na AP. Acha que está a ser feito o suficiente nesse sentido?

Defendo o uso de software livre na administração pública, por razões que ultrapassam as poupanças financeiras. Trata-se de uma oportunidade para que Portugal passe a ser um parceiro activo na produção de software e deixe de ser um mero consumidor passivo de produtos importados, cujo valor começa a deixar de corresponder ao preço que somos obrigados a pagar. Trata-se também de uma oportunidade para trabalhar em redes e comunidades de prática, que muitos países já reconheceram como instrumentos preciosos de modernização administrativa. Por último, a soberania do Estado e os direitos de cidadania exigem cada vez mais transparência no código que está na base dos sistemas de informação que cada vez mais invadem o nosso quotidiano.
Constato que ainda se fez muito pouco no sentido da adopção do software livre na AP e que ainda existe muita hipocrisia quando se aborda este tema do ponto de vista estratégico. Tirando alguns casos mais arrojados como o Ministério da Justiça, ainda existe uma discriminação negativa em relação à adopção do software livre pela generalidade dos serviços públicos e tem-se desperdiçado muito do esforço universitário para a aquisição de competências adequadas ao seu desenvolvimento sustentado em Portugal.

A Direcção Geral de Informática Tributária e Aduaneira é uma das áreas onde a aplicação de tecnologia tem tido resultados mais visíveis. A que se devem?

Como em qualquer empresa, o Estado soube investir prioritariamente em áreas de captação de receita. Por outro lado, o Serviço de Informática Tributária e mais tarde a DGITA surgiram numa era em que já era evidente que o Estado se deveria concentrar mais no planeamento e na gestão dos sistemas e tecnologias da informação e menos no desenvolvimento de aplicações, passando a acreditar que o mercado estaria cada vez mais maduro e qualificado para intervir nas fases de informatização com menor risco e menos soberania. A informática tributária iniciou-se em 1977 no Instituto de informática e a DGITA foi uma herdeira de algumas das suas melhores práticas do início dos anos 80. Por outro lado, tratou-se de um organismo que soube importar do sector bancário alguns dirigentes de topo e através deles muita inovação e experiência que também a circunstância do desenvolvimento da Internet veio acelerar. Se olharmos para os vários estágios de maturidade no desenvolvimento do e-Government, a informática tributária soube progredir de forma sistemática até atingir hoje, nalguns casos, estágios de integração e transformação só alcançáveis nas administrações públicas mais desenvolvidos.

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