quinta-feira, setembro 30, 2010

Por uma Revolução Digital na Administração Pública portuguesa



A multiplicação de entidades paralelas e redundantes, a que temos assistido nos últimos anos, mesmo depois do PRACE, tem criado um clima de competição e nalguns casos de anulação recíproca que, em vez de acrescentar valor ao país, resulta apenas no aumento da despesa pública, na complexidade do sistema Estado e consequentemente no aumento de custos de contexto para os cidadãos e agentes económicos.

No último relatório do World Economic Forum sobre a Competitividade Global 2010-2011 Portugal ainda se encontra no grupo dos países mais desenvolvidos do mundo, mas caiu num ano três posições, de 43º para 46ª lugar no ranking. Neste relatório considera-se que Portugal dispõe de infra-estruturas físicas e tecnológicas suficientes para aumentar a sua competitividade, mas o maior bloqueio continua a ser o excesso de carga burocrática.

Paradoxalmente, se por um lado estamos a criar condições tecnológicas para desobstruir e acelerar processos (cartão do cidadão, plataforma de serviços comuns, etc.), estamos ao mesmo tempo a criar um clima crispado de competição entre serviços, entre a administração directa e indirecta do Estado, entre níveis de governo, etc., que em nada facilitam a verdadeira transformação do funcionamento dos serviços públicos e a sua orientação para o cidadão.

Gastámos dinheiro em infra-estruturas mas não as estamos a saber utilizar. E acima de tudo estamos na prática a promover atitudes e valores de competição, muito distantes da mobilização que seria necessária para a reorientação do funcionamento do Estado para os processos básicos dirigidos aos eventos de vida dos cidadãos e das empresas.

Apesar das boas intenções do Teste SIMPLEX, que já ninguém parece aplicar preventivamente, e apesar das iniciativas correctivas avulsas de carácter departamental, estamos longe de uma verdadeira “revolução digital” nos processos administrativos do Estado.

Desde o meu “Manifesto contra a Burocracia Electrónica”, que apresentei no Canadá em Outubro de 2000, percorri um longo percurso missionário na expectativa de passar uma mensagem de mobilização para esta nova forma de encarar a administração pública na era digital. Senti-me solitário muitas vezes mas já consegui mobilizar para esta nova visão do Estado milhares de funcionários e centenas de estudantes em acções de formação profissional e académicas.

Sei que criei alguma ansiedade em muita gente, mas a verdadeira felicidade não está no conformismo e na apatia que nos parece propor uma certa “lobotomia” política, mas sim no desconforto e na angústia de quem acredita na mudança e tem o desejo de ir sempre mais além. Precisamos de pessoas com um perfil diferente: Pessoas que não se conformem com as coisas mal feitas, pessoas que não se intimidem diante das crises e das dificuldades, pessoas que se utilizem da criatividade, da compreensão, da humildade, da perseverança, da motivação e do espírito de liderança para transformar o mundo e a sociedade.

A maioria dos processos da administração pública actual foram concebidos para a era do papel, desconfiando das pessoas e da própria informação detida pelo Estado, transformando os cidadãos em “paquetes” destinados a recolher e entregar certidões e comprovantes que não fazem mais do que alimentar sistemas redundantes, desconexos e inconsistentes entre si.

A revolução digital nos serviços públicos exige mais inovação, novos paradigmas e novos relacionamentos entre as várias estruturas do Estado, por forma a orientar o seu funcionamento para as grandes prioridades da sociedade.

Não se trata de continuar a gastar mais dinheiro do que até aqui em infra-estruturas TIC, pois as que existem são suficientes para a revolução que venho preconizando há mais de dez anos. Trata-se de fazer apenas um pequeno investimento muito mais inteligente e rentável, capaz de permitir a desmaterialização e a interoperabilidade dos processos.

Esta revolução passa sobretudo pela partilha de informação, pela criação de repositórios comuns sobre pessoas, empresas, território, veículos, etc, acabando definitivamente com as certidões e comprovantes inúteis. Proponho que a maioria dos papéis actualmente entregues pelos cidadãos sejam substituídos pela troca de informação digital em back office, com a consequente aceleração, eficácia e economia dos processos. Estamos a falar de poupanças radicais para o Estado e para a sociedade na ordem dos 90% dos custos processuais que se praticam actualmente. Se isto não acontecer é porque as coisas estão a ser mal feitas e mal conduzidas.

Se a administração pública continuar a fazer as coisas como até aqui e se não alterar os seus valores e as suas atitudes, o dinheiro que se está a gastar em qualquer plano tecnológico não irá resultar na melhoria dos serviços aos cidadãos e agentes económicos mas decerto vai avolumar a “burocracia electrónica” que apenas serve para alimentar territórios de poder e feiras de vaidades e aumentar ainda mais a despesa pública.

Meti em Maio o meu pedido de aposentação, mas continuo a ser um optimista inconformado com a situação do meu país!



Ver Também:

36 medidas para reduzir a despesa pública através da melhor gestão e utilização das TIC

1 comentário:

Carlos Lourenço disse...

Sem dúvida esta tem sido uma área em que muita gente tem assobiado e olhado para o lado.
Coconcordo inteiramente. É necessário olhar para este assunto sem medo de perder importância, colocações, protagonismo, enfim "quintas".
Se existem, e existem, áreas em que a tarefa é urgente mas não é fácil, outras há que não têm dificuldade técnica relevante.
Por exemplo; Porque é que uma AP com a dimensão da nossa tem várias redes de dados de âmbito nacional? Em algumas áreas regionais até com infra-estrutura própria. Porque é que temos várias dezenas de Centros de Dados, muitos sem condições? E o que decorre daqui em despesas de licenciamento, alugueres, consumos eléctricos, equipas de gestão (dispersas)?
Qual o grau de dificuldade em fazer esta consolidação? Sem dúvida que a maior é a luta pelo protagonismo que encerra por um lado, e o receio de perder poder por outro.
Se não houvesse "dinheiro a mais" nesta área, há muito que tínhamos olhado para este assunto com outros olhaos (e há muitos outros).
Com liderança e vontade pouparíamos imenso em custos directos e muito mais ainda em eficácia e eficiência (quanto é que custa a interoperabilidade entre redes da AP? Quando existe.)