Mais uma vez se verificou a ausência da tão desejada convergência estratégica em torno das necessidades do cidadão, pois assistimos hoje a um deplorável exemplo de descoordenação no suporte tecnológico a um dos eventos de vida mais importantes no exercício da cidadania.
As pessoas que têm o Cartão do Cidadão acreditavam que tinham um documento que os identificava perante todos os actos da sua vida cívica e administrativa, mas isso não aconteceu hoje.
Paradoxalmente, se por um lado estamos a criar condições tecnológicas para desobstruir e acelerar processos (cartão do cidadão, plataforma de serviços comuns, etc.), estamos ao mesmo tempo a criar um clima crispado de competição entre serviços, entre a administração directa e indirecta do Estado, entre níveis de governo, etc., que em nada facilitam a verdadeira transformação do funcionamento dos serviços públicos e a sua orientação para o cidadão.
Gastámos dinheiro em infra-estruturas mas não as estamos a saber utilizar. E acima de tudo estamos na prática a promover atitudes e valores de competição, muito distantes da mobilização que seria necessária para a reorientação do funcionamento do Estado para os processos básicos dirigidos aos eventos de vida dos cidadãos e das empresas, como é o caso do acto eleitoral.
Neste acto eleitoral as pessoas foram surpreendidas por uma nova identificação para efeitos eleitorais e o velhinho Bilhete de Identidade ou o novo Cartão do Cidadão não foram suficientes para identificar o eleitor. Fazem-se campanhas publicitárias para tudo, mas não se avisaram as pessoas sobre esta mudança de identificação e de locais de voto.
O Cartão do Cidadão parecia que tinha eliminado o Cartão de Eleitor e que iríamos assistir a uma ubiquidade no direito de voto, uma vez que se trataria de uma simples mudança de estado no registo único do cidadão, permitindo-lhe votar em qualquer mesa de voto e, através do uso do certificado digital, poderia até votar a partir de casa ou num piquenique na Serrada Malcata a partir de um tablet. A situação foi verdadeiramente surreal e demonstrativa da actual falta de governance dos sistemas e tecnologias da informação da administração pública portuguesa.
A situação já era grave quando estávamos a assistir ao lançamento prematuro de tecnologias e só depois ir à procura dos problemas, mas neste caso é a tecnologia a criar problemas novos que resultam de erros graves de concepção e implementação. É o deslumbre tecnológico e político a cegar a visão sistémica dos problemas reais do país.
Porque é que o número do Bilhete de Identidade não pode ser uma chave identificadora para a capacidade eleitoral? Será porque mais uma vez não queremos abrir a Caixa de Pandora e reconhecer que o BI não é unívoco e porque existem profundas deficiências na identificação civil no nosso país?
Numa situação de transição de identidades e de acordo com um plano de contingência que a situação exigiria, o mínimo que se deveria ter feito era a disponibilização de listagens ordenadas por nº de BI e por Nº de eleitor.
Poderei dizer com alguma ironia que, se os principais sistemas do Estado estão em risco e sem planos de contingência e de continuidade de serviços (ISO/IEC 27001), porque é que este seria excepção?
A maioria dos processos da administração pública actual foram concebidos para a era do papel, desconfiando das pessoas e da própria informação detida pelo Estado, transformando os cidadãos em “paquetes” destinados a recolher e entregar certidões e comprovantes que não fazem mais do que alimentar sistemas redundantes, desconexos e inconsistentes entre si.
A revolução digital nos serviços públicos exige mais inovação, novos paradigmas e novos relacionamentos entre as várias estruturas do Estado, por forma a orientar o seu funcionamento para as grandes prioridades da sociedade.
É cada vez mais um imperativo nacional, generalizar a utilização de repositórios comuns relativos a pessoas, empresas, veículos e território, sincronizando os respectivos ciclos de vida e acabando com a redundância e a incoerência de ficheiros sobre as mesmas entidades informacionais.
No caso da identificação do cidadão, mantem-se uma multiplicidade de identidades incoerentes entre si, tentando ultrapassar constrangimentos do Artigo 35º da Constituição.
Sabe-se hoje que uma das maiores causas de fraude está na multiplicidade de identidades com que nos autenticamos perante o sistema Estado, parecendo ricos ou pobres, criminosos ou inocentes, devedores ou credores, vivos ou mortos, consoante as circunstâncias e as conveniências de cada um. A confusão e a irracionalidade dos processos estatais sempre alimentaram profissões e negócios privados, sem acrescentar qualquer valor ao país, mas actualmente não há desculpa para não termos sistemas mais simples, auditáveis, eficazes e seguros para os cidadãos e para a administração pública.
O Artigo 35º da Constituição da República Portuguesa, sobre a “Utilização da Informática”, visa e bem acautelar o acesso aos dados pessoais, protegendo a utilização indevida de informação referente a convicções políticas, partidárias, sindicais, religiosas, etc. e a dados sobre vida privada e origem étnica, etc.
Este Artigo inclui no seu nº 5 a proibição explícita de atribuição de um número nacional único aos cidadãos, o que nos dias de hoje nos parece totalmente absurdo, quando no mundo digital e na economia real estamos identificados com mais precisão do que nos sistemas do Estado.
Na prática parece que é só o Estado que está proibido de usar identidades únicas e o Cartão do Cidadão não passa de mais uma hipocrisia para iludir a proibição do número único, acabando por federar identidades múltiplas para permitir a desobstrução de processos.
Tendo em atenção a evolução dos sistemas de informação e as necessidades processuais e securitárias no mundo de hoje, a proibição do Número Único, prevista no número 5, deverá ser retirada da Constituição, mantendo-se os restantes números do Artigo 35º, sobre a protecção dos dados pessoais informatizados.
4 comentários:
Entrando um pouco mais nas "soluções", e menos nos batidos diagnósticos, acrescentaria a esta interessante análise que talvez esteja na hora de se apostar na profissionalização séria dos Centros de Contacto (proactivos) públicos, focados no Cidadão.
Com os meios adequados, os procedimentos certos e, mais que tudo, as atitudes de cidadania adequadas, diria que, como já demonstrado em casos concretos (pouco estudados) que nem é preciso muito nem caro. Basta querer (politicamente), apoiar (gestionariamente) e orientar (visionariamente).
Como sempre, estás cheio de razão. Tecnologias de informação sem sistemas de informação centrados nas pessoas, processos de mudança sem verdadeira liderança e responsabilização, sem avaliação dos impactos, sem auditoria...
Mas, no caso em apreço, sejamos justos: não tirando a mínima culpa à burocracia, as pessoas, aqui como eleitores, também tem deveres, poderiam e deveriam ter sabido, com a devida antecedência, qual a sua identidade como eleitores e o local onde votariam.
Quanto ao número único tens também toda a razão: há uma enorme hipocrisia à volta do assunto, como se fosse um tabu...
Caro Luis, concordo com voce integralmente. Entretanto, a profissionais em TI com experiencia como voce e eu cabe uma responsabilidade deontologica a qual não nos podemos furtar. Não basta dizer o que podia ter sido feito, e que tentaremos evita-lo no futuro. Temos que averiguar se os problemas (que não são informáticos, são processuais, isto é, de competencia da CNE, o "dono" do sistema) é de tal dimensão que invalide os resultados das eleições de 23 de Janeiro passado. Eu sugiro que seja feito um levantamento (é facil, creio que basta um query a base de dados) para ver qual a taxa de abstenção entre os portadores de Cartão de Cidadão e compara-la com o "baseline" historico que a CNE dispõe, de taxas de abstenção entre os portadores de cartão de eleitor em suporte papel. Caso contrario estaremos na posição de um investigador criminal que lamenta o crime, mas não o resolve, apenas tentando evitar que se repita no futuro.
Muito interessante mesmo esta sua análise. No entanto, nos tempos que correm é necessário haver rigor. Rigor na informação, rigor nas palavras, rigor na execução.
Vamos a factos com rigor: o nome é Cartão de Cidadão e não "do"; 1 dos principais sistemas do estado tem a certificação ISO 27001, é o caso dos serviços da Segurança Social; há também a CNPD, que tem de justificar a sua existência, só não percebo porque não actua mais no sector privado; ... Mas será que alguém acredita que os bancos e as empresas de telecomunicações não estudam comportamentos dos cidadãos à sua revelia? Quando um banco nos oferece um produto, sabe tudo sobre os nossos hábitos financeiros
Concordo consigo, no que respeita à identificação única dos cidadãos e a nossa constituição, e aí nada tem a ver com tecnologia, só depende da vontade dos homens e das mulheres.
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