A passagem de
um modelo burocrático tradicional para um modelo pós-burocrático nunca chegou
verdadeiramente a acontecer em Portugal, tendo-se persistido em sinais
tradicionais através da actuação centralizada e em monopólio a par de uma
empresarialização fora de controlo, com unidades independentes que se foram
apropriando de competências estratégicas e regulatórias, muito para além das
tarefas operacionais específicas da administração indirecta estado. O XIX
Governo está a ter uma prática contraditória com o modelo pós-burocrático, ao
retirar autonomias aos vários níveis do sector estado, nomeadamente convertendo
empresas em institutos e institutos em direcções-gerais, pretendendo deste modo
vigiar de perto os recursos que estiveram fora de controlo nos últimos anos.
Quando um Governo chega ao poder,
sobretudo num período de crise como este, deveria fazer algumas perguntas
prioritárias, se quisesse tomar decisões com alguma objectividade: Quantos
funcionários públicos temos, onde estão, que categorias, qual a idade, qual a
antiguidade, quanto custam, o que fazem? Que dinheiro existe, onde está, quais
os compromissos, quanto devemos? Que património possuímos, onde está, qual o
valor, qual a antiguidade e estado de conservação? As respostas deveriam ser únicas,
certeiras e concertadas entre os diversos organismos horizontais que seria
suposto disporem de fontes de informação fiáveis e sincronizadas, capazes de
responder prontamente a estas perguntas, tais como a DGO - Direcção Geral do
Orçamento, a DGAEP - Direcção Geral da Administração e do Emprego Público, a DGT - Direcção Geral do Tesouro, CGA – Caixa
Geral de Aposentações e a GERAP - Empresa de Gestão Partilhada de Recursos da .
Desde o início dos anos 90 com o
aparecimento da RAFE (Reforma Financeira do Estado) e das suas aplicações SIC e
SRH, bem como da unidade de tesouraria, que se teve uma preocupação de controlo
universal dos recursos da administração pública. No início da implementação do
POCP / RIGORE a par da criação do SIGRAP (Sistema de Gestão dos Recursos da AP)
no âmbito do Sistema de Controlo Interno, aprovado por Manuela Ferreira Leite
em Janeiro de 2003, houve um reforço da preocupação no controlo financeiro de
todos os subsectores do Estado onde circulavam dinheiros públicos. No domínio
dos recursos humanos, a BDAP, criada no final dos anos 90 a cargo do Instituto
de Gestão da Base de Dados dos Recursos Humanos da Administração Pública e mais
tarde retomada em 2003 pela DGAEP e pelo II/MFAP, foi uma boa tentativa de
alargar o conhecimento dos recursos humanos afectos à administração pública
central, regional e local e aos serviços e fundos autónomos, ficando de fora
apenas o sector público empresarial. Esta iniciativa teve também o mérito de
criar normas de interoperabilidade com o SRH e outros ERP em uso no sector
público, o que tornou a universalidade dos dados mais fácil e rápida de
alcançar. Os últimos dados efectivos deste sistema semiautomático remontam a
2005.
Com a criação da GERAP em 2007,
todo este processo de cobrir a totalidade dos recursos financeiros e humanos
foi interrompido e enveredou-se por uma estratégia em sentido inverso, com uma
preocupação centrada na implementação de ERP departamentais e pela venda avulsa
destes serviços e aplicações aos organismos. A universalidade e a consequente
gestão global dos recursos do estado deixou de ser uma prioridade, numa altura
em que seria mais necessária, não apenas pelo contexto de crise, mas também devido
à passagem acelerada nos últimos 10 anos dos organismos da administração directa
para a administração indirecta do estado, de forma deliberada mas também
descontrolada. A própria unidade de tesouraria que foi uma tónica da RAFE nos
anos 90 está a ser posta em causa, como têm sido referido nos relatórios do
Tribunal de Contas sobre as contas no Tesouro, que não chegam a incluir 6% das
empresas públicas, desrespeitando o princípio da unidade de tesouraria imposto
pela União Europeia.
Nos recursos humanos, a BDAP
http://www.bdap.min-financas.pt, que seria suposto estar permanentemente actualizada,
teve a sua última actualização a 6 de Julho de 2007, pouco tempo depois da
criação da GERAP. Nos recursos financeiros e patrimoniais, foi também suspenso
em 2007 o SIGRAP – Sistema de Informação de Gestão dos Recursos da
Administração Pública, criado no âmbito do Sistema de Controlo Interno durante
o período de Manuela Ferreira Leite. A estratégia de adopção de um sistema ERP
único para toda a administração pública gerido pela GERAP, fez esquecer a
necessidade de criar condições de interoperabilidade entre os sistemas
departamentais existentes e o sistema central. O “negócio” da GERAP ofuscou
completamente a gestão global dos recursos do estado, passando a ser uma
“agência de vendas” de pacotes SAP, à procura de um “mercado” sem fim à vista. A
GERAP, para além de não ter cumprido o seu papel, quase destruiu a DGAEP e o
Instituto de Informática e abalou seriamente o funcionamento da DGO. É fácil
ser “Fornecedor” quando os “Clientes” são obrigados a comprar e quando quem
devia regular este “mercado” é desautorizado e fragilizado nas suas
competências (DGAEP, DGO, etc.).
Está-se a olhar para algumas
árvores do nosso quintal em vez de se ver a totalidade da floresta do nosso
território e infelizmente confunde-se autonomia e desorçamentação com descontrolo
dos recursos do estado. É preciso inverter quanto antes este caminho: A aposta
deverá centrar-se na criação de mecanismos de interoperabilidade entre a
diversidade dos sistemas locais e os sistemas centrais suportados na
concertação semântica e em ferramentas adequadas de business intelligence.
O conceito de Serviços
Partilhados, introduzido em 2005 na gestão dos recursos da administração
pública pelo Instituto de Informática, foi totalmente deturpado pela GERAP,
passando a ser uma apropriação centralista e autoritária de recursos sem qualquer
regulação institucional ou de mercado. Desde 2007, todas as atenções e
prioridades se viraram para a “venda” em monopólio de ERP locais e espaço de
computador, num exercício de autolegitimação para impressionar o poder
político, que busca desesperadamente soluções para a redução do défice.
Qualquer empresa portuguesa na
área dos sistemas de gestão (ERP) está impedida de vender serviços ao estado, a
não ser que seja SAP. Em benchmarkings
recentes a GERAP apresentou custos que vão para além do dobro dos custos de
outras soluções disponíveis no mercado português e os prazos para instalação do
GeRFiP e do GeRHuP vão para lá dos dois anos, por incapacidade manifesta de
resposta às solicitações dos organismos. O estado está, através da GERAP, a
concorrer directamente com o sector privado, viciando o jogo através da reserva
de normas de interoperabilidade semântica, que deveriam ser totalmente públicas
e transparentes, bloqueando a fluidez dos dados entre os vários sistemas locais
e a camada estratégica dos sistemas centrais e impedindo o funcionamento em
tempo real da gestão dos recursos humanos, financeiros e patrimoniais do estado,
de suporte fiável às políticas públicas em curso.
Como vai ser possível ter rigor
na Governance e no controlo global dos recursos da administração pública? Como
se vão fazer os próximos Orçamentos? Como se vai fechar a Conta? Quantos são os
trabalhadores do estado? Como gerir as carreiras de pessoal e responder às pressões
corporativas em tempo de crise? Qual o valor patrimonial do estado? Para quando
uma balanço do estado? Para quando o controlo efectivo da Despesa Pública?
Texto publicado no dia 10 de Janeiro de 2012 no Tek.Sapo
2 comentários:
Luisamigo
As suas perguntas são, mais ou menos, as minhas perguntas. Sem o conhecimento que o meu caro Amigo tem e que eu reconheço e aceito. Uma panóplia muito completa, em resumo.
Mas, com o Governo (???) que temos, creio que as respostas nem a conta-gotas chegarão aos cidadãos. Estamos num regime de austeridade - e de autoridade; ou vice-versa.
Por essas e por outras estou tão feliz por partir para Goa e outras Índias no dia 19 deste mês e voltar (infelizmente) a 17 de Abril. Só vou ver futebol, em especial o meu Sporting...
Abç
Parabéns pelo artigo, pela coragem e pela ajuda ao cidadao que permanece presente na descrição dos factos que menciona e nos propósitos que pretende alcançar. Obrigado por mais este acto de cidadania activa.
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