segunda-feira, janeiro 09, 2012

A soberania do estado na era do Cloud Computing - Privatização e inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI


A administração pública portuguesa, apesar dos processos de modernização e reforma a que foi sujeita nos últimos quarenta anos, ainda traduz alguns dos legados históricos que caracterizaram a formação dos estados modernos da Europa, desde a formação das estruturas inspiradas nas instituições militares e jurídicas do antigo império romano, passando pelos valores, normas e hierarquias da igreja católica, até chegarmos ao processo de criação do espaço institucional e administrativo dos modernos estados europeus.
Tal como no passado, a consolidação dos estados modernos passou pela destruição dos poderes tradicionais e regionais, tentando substituir a organização marcadamente patrimonialista por uma organização tendencialmente mais profissional e impessoal, as reformas que estão hoje a ser encetadas não são muito diferentes das que se foram verificando ao longo de todo o processo histórico de afirmação dos estados soberanos e independentes, através da concentração do poder e do domínio dos recursos públicos.
Hoje já não se trata de suseranos feudais mas de novas corporações e lobbies nacionais e transnacionais que voltam a ameaçar as soberanias e as independências do estados actuais, sem esquecer a tendência sempre constante para a desagregação por excessiva departamentalização das estruturas internas da administração pública, fortemente acentuada nos últimos trinta anos pela chamada “nova gestão pública” (New Public Management), através do agenciamento e empresarialização que este modelo dogmatizou com um cariz acentuadamente político e liberal.
Se por um lado as tecnologias estão cada vez mais a possibilitar a integração e a interoperabilidade dos processos interdepartamentais orientados para os eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos, paradoxalmente a sucessão dos ciclos políticos e a excessiva departamentalização e empresarialização interrompem e atrasam fortemente a evolução do e-Government para estágios mais maduros e evoluídos de serviços que se pretendem progressivamente mais personalizados, mais proactivos, mais eficazes, mais baratos e mais fáceis de usufruir.
A nova gestão pública, que os últimos governos tentaram implementar de forma mais ou menos encoberta e que actualmente se acentuou de forma mais explícita, seria suposto que valorizasse a privatização de actividades menos soberanas e susceptíveis de poderem ser devolvidas à economia real, promovendo um estado mais reduzido e menos pesado para os contribuintes e libertando “áreas de negócio” que fossem interessantes e rentáveis para a sociedade. As TIC do sector público desde há muito que são, para as empresas do sector, um alvo apetecível para a privatização, uma vez que a externalização parcial já se vem acentuando nos últimos vinte anos através do outsourcing de serviços técnicos especializados difíceis de encontrar e reter no interior do aparelho do estado. Com efeito, já se está a passar hoje em dia de uma fase tímida de outsourcing parcial para um novo estágio de outsourcing completo de processos de negócio (Business Process Outsourcing). Mas como é que isto se está a passar?
As tecnologias da informação e comunicação poder-se-iam constituir em instrumentos mais ou menos soberanos consoante se aproximam das áreas estratégicas e substantivas da administração pública, específicas de cada ministério, ou se constituem em recursos indiferenciados e menos específicos do sector público, como é o caso da actividades administrativas e instrumentais da gestão de recursos humanos, financeiros e patrimoniais, assim como os serviços de alojamento (hosting) e de gestão de equipamentos e redes. Na perspectiva de Nicholas Carr, trata-se de reter as TI que diferenciam o sector e “realmente interessam” (IT really matters) e descartar para fora as TI que verdadeiramente “não interessam” (IT doesn’t matter).
O deslumbramento político e a sobrevalorização da tecnologia como instrumento de reforma do estado e de obtenção de resultados a curto prazo, transformaram a “informática”, nos últimos dez anos, num instrumento de poder e num recurso a ser capturado pelas várias áreas políticas, capaz de alimentar as suas “feiras de vaidades” e justificar avultados orçamentos, que chegaram aos mil milhões de euros anuais. Esta euforia toldou o raciocínio e a capacidade de gerir e diferenciar as várias tecnologias e os vários sistemas de informação. Pensou-se verdadeiramente mais em tecnologias e em infra-estruturas físicas dispendiosas do que em sistemas de informação, serviços integrados, repositórios únicos e co-produção de valor através das TIC. “Gastou-se” muito dinheiro em tecnologia mas os efeitos na sociedade (outcomes) não tiveram o retorno proporcional (value for money).
Chegámos a uma situação limite em que a despesa pública não pode jamais crescer indefinidamente como até aqui e que, pelo contrário, vai ter de se reduzir de forma drástica. O alargamento da administração indirecta do estado, nomeadamente através da criação indiscriminada de institutos, agências, empresas públicas, fundações, ACE, etc, como forma de fugir ao controlo orçamental, de iludir os bloqueios à admissão de trabalhadores no sector público e como instrumento de multiplicação dos cargos de gestores públicos tem de ter um fim imediato.
Também o outsourcing está a ser cada vez mais questionado pelos custos que envolve, mas será que não vamos ter surpresas num futuro próximo? Numa conjuntura de fortes restrições financeiras, está-se a assistir a uma quebra significativa de contratação externa de serviços que se verificava até aqui (outsourcing parcial), devolvendo aos serviços da administração pública funções desde há muito entregues a empresas privadas (insourcing total), mesmo sem que se tivessem entretanto reforçado e consolidado funções de maior soberania (gestão, planeamento estratégico e arquitectura de sistemas de informação). Esta tendência irá porventura contribuir para uma demonstração de incompetência técnica operacional no curto prazo, seguida de uma possível retoma das funções operacionais, mas também de uma captura das funções de maior soberania do estado no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação (outsourcing total). O risco de captura dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) do estado existe e a situação precisa ser urgentemente equacionada politicamente e gerida ao mais alto nível.

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