A administração
pública portuguesa, apesar dos processos de modernização e reforma a que foi
sujeita nos últimos quarenta anos, ainda traduz alguns dos legados históricos
que caracterizaram a formação dos estados modernos da Europa, desde a formação
das estruturas inspiradas nas instituições militares e jurídicas do antigo
império romano, passando pelos valores, normas e hierarquias da igreja
católica, até chegarmos ao processo de criação do espaço institucional e
administrativo dos modernos estados europeus.
Tal como no
passado, a consolidação dos estados modernos passou pela destruição dos poderes
tradicionais e regionais, tentando substituir a organização marcadamente
patrimonialista por uma organização tendencialmente mais profissional e
impessoal, as reformas que estão hoje a ser encetadas não são muito diferentes
das que se foram verificando ao longo de todo o processo histórico de afirmação
dos estados soberanos e independentes, através da concentração do poder e do
domínio dos recursos públicos.
Hoje já não se
trata de suseranos feudais mas de novas corporações e lobbies nacionais e transnacionais que voltam a ameaçar as
soberanias e as independências do estados actuais, sem esquecer a tendência
sempre constante para a desagregação por excessiva departamentalização das
estruturas internas da administração pública, fortemente acentuada nos últimos
trinta anos pela chamada “nova gestão pública” (New Public Management), através do agenciamento e empresarialização
que este modelo dogmatizou com um cariz acentuadamente político e liberal.
Se por um lado
as tecnologias estão cada vez mais a possibilitar a integração e a
interoperabilidade dos processos interdepartamentais orientados para os eventos
de vida dos cidadãos e agentes económicos, paradoxalmente a sucessão dos ciclos
políticos e a excessiva departamentalização e empresarialização interrompem e
atrasam fortemente a evolução do e-Government
para estágios mais maduros e evoluídos de serviços que se pretendem progressivamente
mais personalizados, mais proactivos, mais eficazes, mais baratos e mais fáceis
de usufruir.
A nova gestão
pública, que os últimos governos tentaram implementar de forma mais ou menos
encoberta e que actualmente se acentuou de forma mais explícita, seria suposto
que valorizasse a privatização de actividades menos soberanas e susceptíveis de
poderem ser devolvidas à economia real, promovendo um estado mais reduzido e
menos pesado para os contribuintes e libertando “áreas de negócio” que fossem
interessantes e rentáveis para a sociedade. As TIC do sector público desde há
muito que são, para as empresas do sector, um alvo apetecível para a
privatização, uma vez que a externalização parcial já se vem acentuando nos
últimos vinte anos através do outsourcing
de serviços técnicos especializados difíceis de encontrar e reter no
interior do aparelho do estado. Com efeito, já se está a passar hoje em dia de
uma fase tímida de outsourcing
parcial para um novo estágio de outsourcing
completo de processos de negócio (Business
Process Outsourcing). Mas como é que isto se está a passar?
As tecnologias
da informação e comunicação poder-se-iam constituir em instrumentos mais ou
menos soberanos consoante se aproximam das áreas estratégicas e substantivas da
administração pública, específicas de cada ministério, ou se constituem em
recursos indiferenciados e menos específicos do sector público, como é o caso
da actividades administrativas e instrumentais da gestão de recursos humanos,
financeiros e patrimoniais, assim como os serviços de alojamento (hosting) e de gestão de equipamentos e
redes. Na perspectiva de Nicholas Carr, trata-se de reter as TI que diferenciam
o sector e “realmente interessam” (IT
really matters) e descartar para fora as TI que verdadeiramente “não
interessam” (IT doesn’t matter).
O
deslumbramento político e a sobrevalorização da tecnologia como instrumento de
reforma do estado e de obtenção de resultados a curto prazo, transformaram a
“informática”, nos últimos dez anos, num instrumento de poder e num recurso a
ser capturado pelas várias áreas políticas, capaz de alimentar as suas “feiras
de vaidades” e justificar avultados orçamentos, que chegaram aos mil milhões de
euros anuais. Esta euforia toldou o raciocínio e a capacidade de gerir e
diferenciar as várias tecnologias e os vários sistemas de informação. Pensou-se
verdadeiramente mais em tecnologias e em infra-estruturas físicas dispendiosas
do que em sistemas de informação, serviços integrados, repositórios únicos e
co-produção de valor através das TIC. “Gastou-se” muito dinheiro em tecnologia
mas os efeitos na sociedade (outcomes)
não tiveram o retorno proporcional (value
for money).
Chegámos a uma
situação limite em que a despesa pública não pode jamais crescer
indefinidamente como até aqui e que, pelo contrário, vai ter de se reduzir de
forma drástica. O alargamento da administração indirecta do estado,
nomeadamente através da criação indiscriminada de institutos, agências,
empresas públicas, fundações, ACE, etc, como forma de fugir ao controlo
orçamental, de iludir os bloqueios à admissão de trabalhadores no sector
público e como instrumento de multiplicação dos cargos de gestores públicos tem
de ter um fim imediato.
Também o outsourcing está a ser cada vez mais questionado
pelos custos que envolve, mas será que não vamos ter surpresas num futuro
próximo? Numa conjuntura de fortes restrições financeiras, está-se a assistir a
uma quebra significativa de contratação externa de serviços que se verificava
até aqui (outsourcing parcial), devolvendo aos serviços da administração
pública funções desde há muito entregues a empresas privadas (insourcing total), mesmo sem que se
tivessem entretanto reforçado e consolidado funções de maior soberania (gestão,
planeamento estratégico e arquitectura de sistemas de informação). Esta
tendência irá porventura contribuir para uma demonstração de incompetência
técnica operacional no curto prazo, seguida de uma possível retoma das funções
operacionais, mas também de uma captura das funções de maior soberania do estado
no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação (outsourcing total). O risco
de captura dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) do estado existe e
a situação precisa ser urgentemente equacionada politicamente e gerida ao mais
alto nível.
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