terça-feira, janeiro 10, 2012

Paradoxos na gestão dos recursos do Estado - A inversão de prioridades no uso das TIC

Portugal tem vindo nos últimos trinta anos a sofrer influências da chamada “nova gestão pública”, visando a passagem de estruturas tradicionais, baseadas no estrito cumprimento de normas, actuando em monopólio, hierarquizadas e caracterizadas pela estabilidade e previsibilidade, para estruturas pós-burocráticas tendencialmente mais eficientes, actuando num ambiente de concorrência e competição entre agentes públicos e privados e num sistema orgânico orientado para o “cliente”, colocando maior ênfase na mudança, na inovação e na produção de produtos e serviços públicos. Era suposto que as antigas direcções gerais fossem sendo divididas em pequenos centros de estudo e formação de políticas públicas, que permanecessem na administração directa do estado, transferindo-se as actividades operacionais para um conjunto de serviços satélites, no âmbito da administração indirecta do estado, capazes de implementar essas políticas e preparar-se para uma possível privatização futura. Seria suposto que se tornassem claros os papéis das unidades estratégicas em relação às unidades operacionais, permitindo uma maior clarificação dos limites entre o sector público e o sector privado.
A passagem de um modelo burocrático tradicional para um modelo pós-burocrático nunca chegou verdadeiramente a acontecer em Portugal, tendo-se persistido em sinais tradicionais através da actuação centralizada e em monopólio a par de uma empresarialização fora de controlo, com unidades independentes que se foram apropriando de competências estratégicas e regulatórias, muito para além das tarefas operacionais específicas da administração indirecta estado. O XIX Governo está a ter uma prática contraditória com o modelo pós-burocrático, ao retirar autonomias aos vários níveis do sector estado, nomeadamente convertendo empresas em institutos e institutos em direcções-gerais, pretendendo deste modo vigiar de perto os recursos que estiveram fora de controlo nos últimos anos.
Quando um Governo chega ao poder, sobretudo num período de crise como este, deveria fazer algumas perguntas prioritárias, se quisesse tomar decisões com alguma objectividade: Quantos funcionários públicos temos, onde estão, que categorias, qual a idade, qual a antiguidade, quanto custam, o que fazem? Que dinheiro existe, onde está, quais os compromissos, quanto devemos? Que património possuímos, onde está, qual o valor, qual a antiguidade e estado de conservação? As respostas deveriam ser únicas, certeiras e concertadas entre os diversos organismos horizontais que seria suposto disporem de fontes de informação fiáveis e sincronizadas, capazes de responder prontamente a estas perguntas, tais como a DGO - Direcção Geral do Orçamento, a DGAEP - Direcção Geral da Administração e do Emprego Público, a  DGT - Direcção Geral do Tesouro, CGA – Caixa Geral de Aposentações e a GERAP - Empresa de Gestão Partilhada de Recursos da .
Desde o início dos anos 90 com o aparecimento da RAFE (Reforma Financeira do Estado) e das suas aplicações SIC e SRH, bem como da unidade de tesouraria, que se teve uma preocupação de controlo universal dos recursos da administração pública. No início da implementação do POCP / RIGORE a par da criação do SIGRAP (Sistema de Gestão dos Recursos da AP) no âmbito do Sistema de Controlo Interno, aprovado por Manuela Ferreira Leite em Janeiro de 2003, houve um reforço da preocupação no controlo financeiro de todos os subsectores do Estado onde circulavam dinheiros públicos. No domínio dos recursos humanos, a BDAP, criada no final dos anos 90 a cargo do Instituto de Gestão da Base de Dados dos Recursos Humanos da Administração Pública e mais tarde retomada em 2003 pela DGAEP e pelo II/MFAP, foi uma boa tentativa de alargar o conhecimento dos recursos humanos afectos à administração pública central, regional e local e aos serviços e fundos autónomos, ficando de fora apenas o sector público empresarial. Esta iniciativa teve também o mérito de criar normas de interoperabilidade com o SRH e outros ERP em uso no sector público, o que tornou a universalidade dos dados mais fácil e rápida de alcançar. Os últimos dados efectivos deste sistema semiautomático remontam a 2005.
Com a criação da GERAP em 2007, todo este processo de cobrir a totalidade dos recursos financeiros e humanos foi interrompido e enveredou-se por uma estratégia em sentido inverso, com uma preocupação centrada na implementação de ERP departamentais e pela venda avulsa destes serviços e aplicações aos organismos. A universalidade e a consequente gestão global dos recursos do estado deixou de ser uma prioridade, numa altura em que seria mais necessária, não apenas pelo contexto de crise, mas também devido à passagem acelerada nos últimos 10 anos dos organismos da administração directa para a administração indirecta do estado, de forma deliberada mas também descontrolada. A própria unidade de tesouraria que foi uma tónica da RAFE nos anos 90 está a ser posta em causa, como têm sido referido nos relatórios do Tribunal de Contas sobre as contas no Tesouro, que não chegam a incluir 6% das empresas públicas, desrespeitando o princípio da unidade de tesouraria imposto pela União Europeia.
Nos recursos humanos, a BDAP http://www.bdap.min-financas.pt, que seria suposto estar permanentemente actualizada, teve a sua última actualização a 6 de Julho de 2007, pouco tempo depois da criação da GERAP. Nos recursos financeiros e patrimoniais, foi também suspenso em 2007 o SIGRAP – Sistema de Informação de Gestão dos Recursos da Administração Pública, criado no âmbito do Sistema de Controlo Interno durante o período de Manuela Ferreira Leite. A estratégia de adopção de um sistema ERP único para toda a administração pública gerido pela GERAP, fez esquecer a necessidade de criar condições de interoperabilidade entre os sistemas departamentais existentes e o sistema central. O “negócio” da GERAP ofuscou completamente a gestão global dos recursos do estado, passando a ser uma “agência de vendas” de pacotes SAP, à procura de um “mercado” sem fim à vista. A GERAP, para além de não ter cumprido o seu papel, quase destruiu a DGAEP e o Instituto de Informática e abalou seriamente o funcionamento da DGO. É fácil ser “Fornecedor” quando os “Clientes” são obrigados a comprar e quando quem devia regular este “mercado” é desautorizado e fragilizado nas suas competências (DGAEP, DGO, etc.).
Está-se a olhar para algumas árvores do nosso quintal em vez de se ver a totalidade da floresta do nosso território e infelizmente confunde-se autonomia e desorçamentação com descontrolo dos recursos do estado. É preciso inverter quanto antes este caminho: A aposta deverá centrar-se na criação de mecanismos de interoperabilidade entre a diversidade dos sistemas locais e os sistemas centrais suportados na concertação semântica e em ferramentas adequadas de business intelligence.
O conceito de Serviços Partilhados, introduzido em 2005 na gestão dos recursos da administração pública pelo Instituto de Informática, foi totalmente deturpado pela GERAP, passando a ser uma apropriação centralista e autoritária de recursos sem qualquer regulação institucional ou de mercado. Desde 2007, todas as atenções e prioridades se viraram para a “venda” em monopólio de ERP locais e espaço de computador, num exercício de autolegitimação para impressionar o poder político, que busca desesperadamente soluções para a redução do défice.
Qualquer empresa portuguesa na área dos sistemas de gestão (ERP) está impedida de vender serviços ao estado, a não ser que seja SAP. Em benchmarkings recentes a GERAP apresentou custos que vão para além do dobro dos custos de outras soluções disponíveis no mercado português e os prazos para instalação do GeRFiP e do GeRHuP vão para lá dos dois anos, por incapacidade manifesta de resposta às solicitações dos organismos. O estado está, através da GERAP, a concorrer directamente com o sector privado, viciando o jogo através da reserva de normas de interoperabilidade semântica, que deveriam ser totalmente públicas e transparentes, bloqueando a fluidez dos dados entre os vários sistemas locais e a camada estratégica dos sistemas centrais e impedindo o funcionamento em tempo real da gestão dos recursos humanos, financeiros e patrimoniais do estado, de suporte fiável às políticas públicas em curso.
Como vai ser possível ter rigor na Governance e no controlo global dos recursos da administração pública? Como se vão fazer os próximos Orçamentos? Como se vai fechar a Conta? Quantos são os trabalhadores do estado? Como gerir as carreiras de pessoal e responder às pressões corporativas em tempo de crise? Qual o valor patrimonial do estado? Para quando uma balanço do estado? Para quando o controlo efectivo da Despesa Pública?

Texto publicado no dia 10 de Janeiro de 2012 no Tek.Sapo 

segunda-feira, janeiro 09, 2012

A soberania do estado na era do Cloud Computing - Privatização e inversão de prioridades na gestão dos recursos de SI/TI


A administração pública portuguesa, apesar dos processos de modernização e reforma a que foi sujeita nos últimos quarenta anos, ainda traduz alguns dos legados históricos que caracterizaram a formação dos estados modernos da Europa, desde a formação das estruturas inspiradas nas instituições militares e jurídicas do antigo império romano, passando pelos valores, normas e hierarquias da igreja católica, até chegarmos ao processo de criação do espaço institucional e administrativo dos modernos estados europeus.
Tal como no passado, a consolidação dos estados modernos passou pela destruição dos poderes tradicionais e regionais, tentando substituir a organização marcadamente patrimonialista por uma organização tendencialmente mais profissional e impessoal, as reformas que estão hoje a ser encetadas não são muito diferentes das que se foram verificando ao longo de todo o processo histórico de afirmação dos estados soberanos e independentes, através da concentração do poder e do domínio dos recursos públicos.
Hoje já não se trata de suseranos feudais mas de novas corporações e lobbies nacionais e transnacionais que voltam a ameaçar as soberanias e as independências do estados actuais, sem esquecer a tendência sempre constante para a desagregação por excessiva departamentalização das estruturas internas da administração pública, fortemente acentuada nos últimos trinta anos pela chamada “nova gestão pública” (New Public Management), através do agenciamento e empresarialização que este modelo dogmatizou com um cariz acentuadamente político e liberal.
Se por um lado as tecnologias estão cada vez mais a possibilitar a integração e a interoperabilidade dos processos interdepartamentais orientados para os eventos de vida dos cidadãos e agentes económicos, paradoxalmente a sucessão dos ciclos políticos e a excessiva departamentalização e empresarialização interrompem e atrasam fortemente a evolução do e-Government para estágios mais maduros e evoluídos de serviços que se pretendem progressivamente mais personalizados, mais proactivos, mais eficazes, mais baratos e mais fáceis de usufruir.
A nova gestão pública, que os últimos governos tentaram implementar de forma mais ou menos encoberta e que actualmente se acentuou de forma mais explícita, seria suposto que valorizasse a privatização de actividades menos soberanas e susceptíveis de poderem ser devolvidas à economia real, promovendo um estado mais reduzido e menos pesado para os contribuintes e libertando “áreas de negócio” que fossem interessantes e rentáveis para a sociedade. As TIC do sector público desde há muito que são, para as empresas do sector, um alvo apetecível para a privatização, uma vez que a externalização parcial já se vem acentuando nos últimos vinte anos através do outsourcing de serviços técnicos especializados difíceis de encontrar e reter no interior do aparelho do estado. Com efeito, já se está a passar hoje em dia de uma fase tímida de outsourcing parcial para um novo estágio de outsourcing completo de processos de negócio (Business Process Outsourcing). Mas como é que isto se está a passar?
As tecnologias da informação e comunicação poder-se-iam constituir em instrumentos mais ou menos soberanos consoante se aproximam das áreas estratégicas e substantivas da administração pública, específicas de cada ministério, ou se constituem em recursos indiferenciados e menos específicos do sector público, como é o caso da actividades administrativas e instrumentais da gestão de recursos humanos, financeiros e patrimoniais, assim como os serviços de alojamento (hosting) e de gestão de equipamentos e redes. Na perspectiva de Nicholas Carr, trata-se de reter as TI que diferenciam o sector e “realmente interessam” (IT really matters) e descartar para fora as TI que verdadeiramente “não interessam” (IT doesn’t matter).
O deslumbramento político e a sobrevalorização da tecnologia como instrumento de reforma do estado e de obtenção de resultados a curto prazo, transformaram a “informática”, nos últimos dez anos, num instrumento de poder e num recurso a ser capturado pelas várias áreas políticas, capaz de alimentar as suas “feiras de vaidades” e justificar avultados orçamentos, que chegaram aos mil milhões de euros anuais. Esta euforia toldou o raciocínio e a capacidade de gerir e diferenciar as várias tecnologias e os vários sistemas de informação. Pensou-se verdadeiramente mais em tecnologias e em infra-estruturas físicas dispendiosas do que em sistemas de informação, serviços integrados, repositórios únicos e co-produção de valor através das TIC. “Gastou-se” muito dinheiro em tecnologia mas os efeitos na sociedade (outcomes) não tiveram o retorno proporcional (value for money).
Chegámos a uma situação limite em que a despesa pública não pode jamais crescer indefinidamente como até aqui e que, pelo contrário, vai ter de se reduzir de forma drástica. O alargamento da administração indirecta do estado, nomeadamente através da criação indiscriminada de institutos, agências, empresas públicas, fundações, ACE, etc, como forma de fugir ao controlo orçamental, de iludir os bloqueios à admissão de trabalhadores no sector público e como instrumento de multiplicação dos cargos de gestores públicos tem de ter um fim imediato.
Também o outsourcing está a ser cada vez mais questionado pelos custos que envolve, mas será que não vamos ter surpresas num futuro próximo? Numa conjuntura de fortes restrições financeiras, está-se a assistir a uma quebra significativa de contratação externa de serviços que se verificava até aqui (outsourcing parcial), devolvendo aos serviços da administração pública funções desde há muito entregues a empresas privadas (insourcing total), mesmo sem que se tivessem entretanto reforçado e consolidado funções de maior soberania (gestão, planeamento estratégico e arquitectura de sistemas de informação). Esta tendência irá porventura contribuir para uma demonstração de incompetência técnica operacional no curto prazo, seguida de uma possível retoma das funções operacionais, mas também de uma captura das funções de maior soberania do estado no âmbito dos sistemas e tecnologias da informação (outsourcing total). O risco de captura dos sistemas e tecnologias da informação (SI/TI) do estado existe e a situação precisa ser urgentemente equacionada politicamente e gerida ao mais alto nível.